MATRAGA 21

PAIXÃO DO ARQUIVO
Diana Klinger (UERJ)

As manifestações de rememoração, de recuperação e revisão do passado e os programas de incentivo à conservação do patrimônio têm se multiplicado notavelmente nas últimas décadas. Vivemos numa espécie de “cultura da memória” – expressão de Andreas Huyssen – que se manifesta tanto nos debates públicos e acadêmicos quanto nas produções da indústria cultural. De maneira que “memória” e “arquivo” parecem ser dois conceitos chaves nesses tempos. Contudo, nada é menos claro, nada é menos garantido hoje em dia, segundo Derrida, do que a palavra arquivo. Pois o arquivo não se reduz à memória: ele tem lugar no desfalecimento da memória. Não há arquivo sem consignação em algum lugar exterior que assegure a possibilidade da repetição, da reprodução ou da reimpressão. Mais ainda, o arquivo implica – sobretudo – a constituição de uma instância ou de um lugar de autoridade.

O vocábulo “arquivo” remete ao grego arkhé, que designa ao mesmo tempo começo e comando. Assim, coordena dois princípios: o da natureza, ou da história, ali onde as coisas começam, e o da lei (nomos), ali onde os homens e os deuses comandam. O sentido de “arquivo” vem, por outro lado, do arkheîon grego, isto é: uma casa, um domicílio, que era a residência dos magistrados superiores, os arcontes. Era na casa desses cidadãos, detentores do poder político, que se depositavam os documentos oficiais. Daí que o princípio arcôntico signifique começo e mandato, lugar e lei. Assim, a morada dos arcontes marca a passagem do privado ao público.

Pois bem, a memória também se situa entre a construção da identidade individual e a coletiva. Entre a faculdade íntima de rememoração e o coletivo, público, social. Segundo Derrida, a psicanálise, que se coloca nesse limiar, configura uma teoria do arquivo. Ela privilegia as figuras da marca e da tipografia, seu discurso aborda a estocagem das impressões e a cifragem das inscrições, mas também a censura e o recalcamento. A psicanálise quer ser uma ciência geral do arquivo, de tudo o que pode acontecer à economia da memória e seus aportes, traços, documentos (em suas formas internas ou externas).

As hipóteses de Derrida concernem à impressão que a assinatura freudiana deixou sobre seu próprio arquivo, sobre o conceito de arquivo e de arquivamento. Todo arquivo, diz Derrida, é ao mesmo tempo instituidor e conservador, revolucionário e tradicional. Eco-nômico: guarda, põe em reserva, economiza, mas fazendo a lei (nomos). Ele tem força de lei, de uma lei que é a casa (oikos), família ou instituição. (Transformada em museu, a casa de Freud hospeda todos esses poderes da economia.)

Derrida menciona duas citações que referem a dois locais da inscrição freudiana: uma pública e uma privada. A inscrição pública refere-se a uma citação de Freud em “O mal-estar na cultura”, onde ele se lamenta de estar gastando tinta – “impressão” – ao reproduzir coisas óbvias, conhecidas. No entanto, essa lamentação conduz ao reconhecimento da pulsão de morte, da pulsão de destruição, o que justifica, então, a impressão do texto. A pulsão de morte é uma pulsão silenciosa, destruidora do arquivo. Arquiviolítica, ela é uma pulsão de agressão e destruição. De maneira que naquilo que permite o arquivamento encontramos aquilo que expõe à destruição. Esse é um dos sentidos da expressão mal de arquivo.

Sobre este arquivamento do arquivo freudiano, Derrida coloca duas questões: uma relacionada à exposição teórica da psicanálise e outra ao arquivamento da própria psicanálise enquanto ciência. Quanto à primeira, Derrida diz que, com a idéia de Freud do bloco mágico, a teoria da psicanálise tornou-se uma teoria do arquivo e não somente uma teoria da memória. O bloco mágico é um modelo exterior, portanto arquival, do aparelho psíquico de registro e de memorização, que integra os conceitos da psicanálise que tratam do recalque e da censura. Assim, o modelo do bloco mágico incorpora, sob uma pulsão de destruição, a pulsão mesma de conservação que poderíamos chamar de pulsão de arquivo. Em “Moisés e o monoteísmo”, Freud distingue entre os caracteres adquiridos e os “traços mnêmicos ligados a impressões exteriores”. Esses últimos configuram um arquivo transgeneracional, a lembrança de uma experiência ancestral. Sem a força, diz Derrida, e a autoridade reprimível e recalcável desta memória transgeneracional, os problemas dos quais falamos estariam resolvidos de antemão.

A segunda questão é da ordem do arquivamento da própria psicanálise, sua prática institucional e clínica, seus aspectos jurídicoeditoriais, acadêmicos e científicos dos problemas de publicação e tradução. Aqui Derrida se pergunta de que maneira o conjunto desse campo foi determinado por um estado das técnicas de comunicação e arquivamento. Pois, diz Derrida, o arquivo, como impressão, escritura, não é somente o local de conservação de um conteúdo passado. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento. A estrutura técnica do arquivo arquivante determina a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. Pois a questão do arquivo não é uma questão do passado: trata-se do futuro, de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã. Talvez seja por isso que não dispomos de um conceito unificado de arquivo: “O arquivo, se queremos saber o que isto teria querido dizer, nós só o saberemos num tempo por vir”.

Nesse sentido, afirma Derrida, o correio eletrônico está em vias de transformar todo o espaço público e privado da humanidade. “A técnica arquivística vive atualmente uma revolução sem limites”. O correio eletrônico não é apenas uma técnica, ele está acompanhado de transformações jurídicas e políticas, que afetam nada menos que o direito de propriedade, o direito de publicar e de reproduzir. A técnica arquivística determina não o momento único do registro conservador, e sim a instituição mesma do acontecimento arquivável. Condiciona não só a forma ou a estrutura, mas também o conteúdo da impressão: “não se vive mais da mesma maneira aquilo que não se arquiva da mesma maneira”.

Quanto à inscrição privada, Derrida cita a dedicatória que o pai de Freud escreve para o 35º aniversário do seu filho numa Bíblia na qual Freud estudara em sua juventude. O pai a restitui como presente com uma nova encadernação de couro, uma “pele nova”. A citação foi retirada do livro de Yosef Hayim Yerushalmi, Freud´s Moses, Judaism Terminavel and Interminavel. Derrida sublinha, nessa inscrição do pai de Freud, as palavras que apontam para a instituição e a tradição da lei, para a dimensão arcôntica, para a lógica do arquivo, da memória e do memorial. A primeira frase da dedicatória recorda, ao menos figuradamente, a circuncisão de Freud. Derrida lê, nessa dedicatória, um novo pacto que renova o da circuncisão, e assim se abre uma nova pergunta: em que se transforma o arquivo quando ele se inscreve diretamente no próprio corpo?

Por fim, Derrida estabelece três teses a respeito da relação entre a psicanálise e o conceito de arquivo. A primeira diz que Freud tornou possível o pensamento de um arquivo propriamente dito, de um arquivo hipomnésico ou técnico, do suporte (material ou virtual) que, estando no espaço psíquico, não se reduz à memória. Derrida fala de uma “promessa arqueológica” através da qual a psicanálise, em seu mal de arquivo, tenta sempre voltar à origem viva daquilo que o arquivo perde.

A segunda tese é a de que o arquivo é possibilitado pela pulsão de morte, de agressão e de destruição. A destruição anarquivante pertence ao processo de arquivamento. A lei do arconte, da consignação que organiza o arquivo, não é jamais não-violenta. A consignação não ocorre nunca sem a pressão (impressão, repressão e supressão) da qual o recalque e a repressão são figuras representativas. Na terceira tese, Derrida diz que ninguém estabeleceu melhor do que Freud o que chamamos de o princípio arcôntico do arquivo. Freud desconstruiu a autoridade do princípio arcôntico; mostrou como este princípio, que é paternal e patriarcal, não se coloca senão se repetindo e não retorna para se re-colocar senão no parricídio. “O arcôntico é a tomada de poder do arquivo pelos irmãos. A igualdade e a liberdade dos irmãos. Uma idéia ainda viva da democracia.”

Na argumentação de Derrida, o sintagma impressão freudiana refere-se a três sentidos diferentes: “impressão” como grafia ou escritura, como marca e como noção ou idéia vaga. Assim, a impressão freudiana se refere à marca deixada por Freud – a partir da impressão deixada nele, inscrita nele a partir de seu nascimento, e sua aliança, a partir de sua circuncisão – através da história da psicanálise, da instituição e das obras, passando pela correspondência pública ou particular. A impressão deixada por Freud sobre quem depois dele, falar dele ou falar a ele. “É preciso falar do fantasma até mesmo ao fantasma e com ele”, disse Derrida em Espectros de Marx e é isso o que Yerushalmi faz, no “Monólogo com Freud”, que está no final do seu livro Freud´s Moses, ao qual Derrida lhe dedica boa parte do ensaio. “Impressão” é, então, uma questão de herança. “Seja em que disciplina for, não deveríamos pretender falar disso sem termos sido de antemão marcados por essa impressão freudiana.”

Mas, por outro lado, Freud jamais conseguiu formar um conceito de arquivo. Não temos conceito, diz Derrida, apenas uma impressão, uma série de impressões. “Arquivo” é somente uma noção, uma impressão associada a uma palavra para a qual não temos nenhum conceito. Pois bem, Foucault já tinha mostrado essa falta como algo intrínseco ao conceito de arquivo. Não é possível descrever nosso próprio arquivo, pois é no interior de suas regras que falamos, é ele que comanda o que podemos dizer – e a si próprio, objeto de nosso discurso –, seus modos de aparição, suas formas de existência e coexistência, seu sistema de acumulação, de historicidade e de desaparição.

Então, se não temos um conceito estabelecido de arquivo, é porque seria necessário esclarecer o campo enunciativo de que ele mesmo faz parte. Ou seja, o sistema de arquivo que permite hoje falar do arquivo em geral. Esse é o papel da arqueologia para Foucault: ela não busca nenhum começo, mas é uma descrição geral que interroga o já dito ao nível de sua existência, da função enunciativa que se exerce nele, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo que provê.

O horizonte das questões que coloca Derrida nesse ensaio são “os desastres que marcaram o fim do milênio”, que são arquivos do mal: dissimulados ou destruídos, interditados, desviados, “recalcados”. “Não se renuncia jamais ao poder sobre um documento, sobre sua detenção, retenção ou interpretação”, diz Derrida. Mas, se pergunta, a quem cabe, em última instância, a autoridade sobre a instituição do arquivo?

Nada é menos garantido hoje, diz Derrida, que a palavra arquivo, e nada é mais perturbador: a perturbação do arquivo é “a perturbação dos segredos, dos complôs, da clandestinidade, das conjurações meio públicas, meio privadas, entre a família, a sociedade e o Estado”. Perturbação é aquilo que turva a visão, que impede de ver e saber. A perturbação do arquivo deriva do mal de arquivo.

No entanto, estar com mal de arquivo pode significar outra coisa além de uma perturbação. O mal de arquivo é, também, uma febre de arquivo: é arder de paixão. É procurar incessantemente o arquivo onde ele se esconde. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa. “Impaciência absoluta de um desejo de memória”, o mal de arquivo é, portanto, uma paixão do arquivo.


REFERÊNCIA

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001 [1995].