MATRAGA 21
v.14 | n. 21 | jul-dez, 2007

Matraga 21

APRESENTAÇÃO

O presente número de Matraga aborda o tema “Arquivos e vida literária”. Gostaríamos de agradecer ao Colegiado de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UERJ a oportunidade de abrir as páginas da revista para o tema, que constitui o fio condutor do trabalho realizado pelo Grupo de Pesquisa/CNPq “Vida literária e história cultural”. Trata-se de um Grupo baseado no Programa de Pós em Letras da UERJ, mas vocacionado para a colaboração multi-institucional, a qual se concretiza, até o momento, pela participação formal de pesquisadores vinculados à PUC-Rio. Nas jornadas de pesquisa já promovidas ao longo dos últimos quatro anos, assim como nos simpósios que organizamos no âmbito do Encontro Regional (2005) e Congresso Internacional (2006) da ABRALIC, tivemos a participação de pesquisadores nacionais e estrangeiros. O Grupo de Pesquisa mantém ainda um elo institucional na UERJ através do Centro de Estudos Virgínia Côrtes de Lacerda, cujo site na Internet (http://www.avatar.ime.uerj.br/cevcl/) funciona como espaço de divulgação de textos de trabalho e de veiculação de entrevistas em vídeo com escritores contemporâneos.

O conjunto de textos aqui publicados é uma boa demonstração de parte das ramificações que o tema permite. Pois talvez a característica central do trabalho de nosso Grupo de Pesquisa seja a diversificação das linhas possíveis de investigação, apontando não para a exclusividade de um objeto em torno do qual todas as pesquisas individuais girassem, e sim para a idéia de uma rede integrada de interesses correlatos, em torno dos dois grandes pólos, “arquivo” e “vida literária”. Trata-se portanto de um trabalho mais na esfera da história literária, com suas categorias intrinsecamente plurais e interfácicas, do que propriamente de teoria literária, com seus objetos retorica e cientificamente bem delineados.

História literária sim, mas história do presente, história imediata. Nesse sentido, memória em ato, crônica do que está acontecendo e do que acabou de acontecer. Nosso foco é a vida literária contemporânea, abrangendo o final do século passado (a partir dos anos 70) e a virada para o século atual (anos 90 e 00). Nesse sentido ainda, a teoria e a prática do arquivo como documentação da produção corrente. A atividade arquivística como andaime de uma reflexão que tem a história como horizonte, mas que pela contemporaneidade de seu objeto, não pode nem quer se cristalizar em interpretações fechadas e definitivas. A pesquisa literária e cultural como suporte de outras pesquisas proliferantes. O inconclusivo, o aberto, o flexível, o interfácico como valores metodológicos.

Assim, o conteúdo do presente número de Matraga deve ser encarado como conjunto de relatos de trabalho em progresso. São trabalhos em progresso sobre situações em progresso, em processo. O desafio é conciliar a idéia de processo com a idéia de domiciliação (cf. Mal de Arquivo, de Derrida) inerente à constituição de uma base documental, hoje oscilante entre a solidez das casas e fundações culturais e a fluidez das bases de dados virtuais. A domiciliação em processo é consagração, decantação, reflexão.

Marcante no processo em curso de domiciliação da literatura, tanto modernista quanto pós-modernista e/ou contemporânea, tem sido a entrada em cena das Universidades como locais de preservação do patrimônio literário e de formação de acervos de escritores, colocando em pauta no âmbito dessas instituições a questão dos suportes arquivísticos. No presente volume, o artigo de Reinaldo Marques fornece uma valiosa sistematização dos principais pressupostos para um pensar a prática do arquivo como work in progress nas condições contemporâneas em nosso país. Para além do seu imperdível esboço de uma história dos arquivos literários modernos no Brasil, temos também na parte inicial a proposta sugestiva de teorizar o arquivo como figura epistemológica.

Com efeito, o conceito de arquivo (enquanto estocagem de informação) paira sobre as ciências humanas contemporâneas como uma espécie de metacategoria unificadora, como já foram em outros tempos “linguagem” ou “cultura”. Tanto a linguagem quanto a cultura são arquivos em processo. Nesse sentido, o debate em torno do conceito de “arquivo” é um debate em torno de um tropo de conhecimento (ou seja, “figura epistemológica”, como quer Reinaldo). Em contraste teórico com o artigo de Reinaldo, e tendo em vista o horizonte comparativista de nossa Pós-Graduação, publicamos o artigo de Paulo Astor Soethe e Juliana Pasquarelli Perez que aborda a experiência alemã da constituição de arquivos literários. Na mesma linha de oferecer ao leitor de Matraga artigos sistematizadores introdutórios aos dois tópicos que configuram nosso tema, publicamos a resenha de Diana Klinger sobre o livro Mal de Arquivo, de Derrida.

Já no que diz respeito à literatura e vida literária contemporâneas, a peça de resistência é o artigo de Luciene Azevedo, que parte dos blogs para pensar a temática da escrita de si, decisiva em boa parte da produção dos nossos dias, seja no suporte blog-circuito virtual, seja no suporte livro-mercado editorial. Aqui, como no caso de “arquivo”, complementamos o artigo de Luciene com a resenha feita por Ana Cristina Chiara sobre a obra de Leonor Arfuch, El espacio biografico, referência bibliográfica imprescindível para refletir e conceituar aquilo que pode haver de distintivamente singular na produção contemporânea, no tocante à questão da primeira pessoa. Ainda como parte deste grupo de textos, temos o artigo de Solange Ribeiro de Oliveira sobre Glauco Mattoso, além das resenhas sobre alguns lançamentos literários recentes.

Nos artigos dos Profs. Francisco Venceslau dos Santos, Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo e Teresa Martins Marques temos relatos de trabalhos realizados diretamente com fontes documentais primárias (Francisco Venceslau), fontes arquivísticas e bibliográficas (Carmem Lúcia) e um relato prático de domiciliação do grande poeta e homem de letras português David Mourão-Ferreira (Teresa). Embora trabalhe fundamentalmente com Lima Barreto, a Profª Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo tem atuado junto a nosso Grupo de Pesquisa na medida em que o pensar a prática do arquivismo literário hoje implica em repensar práticas passadas. Nesse sentido, seu artigo apresenta um duplo valor, não só como volta criativa aos documentos que configuram a assinatura Lima Barreto, mas porque nos resgata um Lima Barreto que é agudo observador e crítico da mesma civilização das imagens que constitui o pano de fundo da vida literária contemporânea. Destaquem-se também a importância do resgate da figura de Samuel Rawet que vem sendo realizado pelo trabalho de pesquisador de Francisco Venceslau dos Santos, assim como a leitura inovadora feita por Glaucia Soares Bastos da correspondência de Monteiro Lobato.

Finalmente, publicamos no presente volume dois artigos que representam pontes transdisciplinares no exercício da pesquisa sobre “arquivo e história cultural imediata”. O artigo da antrópologa Santuza Naves representa uma reflexão simultaneamente conceitual e autobiográfica sobre a questão da entrevista, tendo como contraface complementar a resenha de Teodoro Koracakis. Para nós, trabalhando na interface da história e da memória, a técnica etnográfica da entrevista é contribuição fundamental. Mas indo além disso, no âmbito de nosso Grupo de Pesquisa a entrevista interessa também como gênero discursivo dialógico, interativo, em processo, intersubjetivo, trans-subjetivo. A entrevista como texto crítico deve ser pensada a partir da entrevista etnográfica e da entrevista jornalística.

Quanto ao artigo da Profª Marília Rothier Cardoso, que exerce a Co-coordenação do nosso Gpesq, leva o foco até a área da televisão. Na verdade, o artigo de Marília opera uma interface entre o relato de trabalho arquivístico com fontes primárias literárias e o lançamento de ponte transdisciplinar, ao evocar o Glauber Rocha fugaz homem de televisão. O trabalho de pesquisa que Marília Rothier Cardoso vem realizando com o arquivo de Glauber tem para nós importância estratégica, por tratar o material do ponto de vista textual e literário. Nos esforçamos para transformar os escritos de Glauber, assim como os de Hélio Oiticica, em matéria de história literária e cultural.

Ana Cláudia Viegas
Italo Moriconi