MATRAGA 20
v.14 | n. 20 | jan-jun, 2007

APRESENTAÇÃO

Linguagem e prática social

O presente número de Matraga vem colocar em cena uma dimensão indiscutivelmente relevante dos estudos centrados nas práticas linguageiras na atualidade: o lugar das práticas de linguagem como práticas sociais, a saber, a linguagem em sua relação com as coerções que pesam sobre ela, por um lado, e, por outro, a retroação de tais práticas sobre a comunidade que as sustenta. Visto sob esse prisma, a articulação que se verifica entre linguagem e seu entorno está longe de se constituir assentada em relações lógicas de causa e efeito. Ao contrário, situamo-nos numa via de mão dupla na qual a mera causalidade linear não pode ter direito de cidadania. Em outras palavras, duplo movimento de configuração de práticas que se constituem como engendramento simultâneo de uma produção de textos e de uma certa configuração do social. Eis o(s) sentido(s) que ora buscamos atualizar para prática social – noção sob cujo signo se inscreve o presente número de Matraga.

Em absoluta compatibilidade com a temática das práticas linguageiras vistas como práticas sociais, Dominique Maingueneau tematiza a heterogeneidade e a instabilidade do campo dos estudos discursivos na atualidade. Procede, desse modo, a considerações sobre a pertinência do cruzamento de diferentes critérios para cartografar o referido campo, como se verifica por meio da adoção de um recorte por disciplinas, por correntes e por territórios. A reflexão sobre uma dupla categoria de unidades discursivas que o autor denomina “tópicas” e “não tópicas” complementa sua proposta.

Lucília Maria Sousa Romão situa-se no mesmo marco teórico de uma Análise do discurso de inspiração francesa para problematizar uma suposta transparência da linguagem, explicitando-lhe regiões de indiscutível opacidade, principalmente no que diz respeito às relações de saber e poder que são acionadas quando se trata de inscrever uma memória discursiva. Memória e historicidade são noções-chave que darão sustentação à reflexão promovida pela autora.

Del Carmen Daher vem também contribuir com seu artigo, o qual se inscreve nas aventuras de uma Análise do discurso caracterizada como enunciativo-discursiva: por meio das noções de ethos e cenografia, volta-se para uma (re)leitura de um momento da história de nosso país, recuperando os primórdios de uma prática instituída em 1938 quando Getúlio Vargas faz um discurso aos trabalhadores por ocasião das comemorações de 10 de maio.

É ainda o universo do trabalho que será iluminado no artigo de Vera Lucia de Albuquerque Sant’Anna e M. Cecília P. Souza-e-Silva, mas dessa vez sendo explorado pelo viés das prescrições que pesam sobre a execução de uma atividade. O artigo assenta-se numa dupla perspectiva de análise: a dos discursos produzidos na própria situação de trabalho (no caso, o trabalho em uma empresa hoteleira) e a dos discursos que se produzem acerca do trabalho (quando, por exemplo, a mídia impressa se propõe refletir sobre a questão).

Márcia Atálla Pietroluongo adota um referencial teórico sem dúvida em estreita afinidade com o de uma Análise do discurso de base francesa, voltando-se, a seu turno, para uma abordagem do território da Educação nacional: ao investigar as implicações políticas da língua como elemento estruturador de subjetividades e as possibilidades asseguradas ao professor de línguas no referido contexto, a autora tematiza a produção de identidades em estreita conexão com o resgate de um exercício de cidadania.

O artigo de Marília Ferreira retoma a mesma preocupação com o universo educacional, tematizando a relevância de uma certa concepção da noção de gênero do discurso, que a autora vai tomar de empréstimo à escola australiana, para repensar o ensino de línguas (materna e estrangeira). Procede-se, assim, ao relato de uma experiência realizada a partir de um curso de inglês como segunda língua, sendo, avaliado, mediante aplicação de uma metodologia específica, o desempenho dos alunos na produção de cartas de apresentação.

Michaela Wolf traz a reflexão de Pierre Bourdieu acerca das formas simbólicas e suas repercussões sobre os trabalhos de tradução. Tomando de empréstimo a Bourdieu noções como as de capital e habitus, a autora se propõe debater um tema que constitui na contemporaneidade uma das marcas centrais do trabalho no campo da tradução: a pertinência de um enfoque que possa dar conta da ineludível preocupação com o social no referido campo de estudos.

Vera Teixeira de Aguiar também retoma a contribuição de Bourdieu, dessa vez para abordar a função social da leitura. Mediante a noção de capital cultural, a autora procede ao relato de uma experiência com oficinas de leitura, iniciativa que teve por objetivo concretizar um duplo empreendimento: por um lado, despertar no aluno o prazer da leitura; por outro, oportunizar uma reflexão sobre a experiência de formação de professores da área de Letras.

José Carlos de Azeredo também explora a temática da relevância da leitura (e da escrita) como condição sine qua non do “sucesso do empreendimento pedagógico”, o que pode ser ratificado, segundo o autor, por meio de uma reflexão voltada para o caráter simbólico da língua. Tomando por base noções como a de contrato de comunicação, o autor aborda as práticas de linguagem em contextos sociocomunicativos pelo viés do que denomina “textos-meios” e “textos-objetos”.

Roberto Perobelli de Oliveira e Paulo Cortes Gago situam-se no marco da tradição anglo-saxônica quando delimitam o domínio específico no qual se movem: a Análise da Conversa etnometodológica. Com efeito, situando-se no campo das práticas linguageiras cotidianas, os autores preocupam-se com o modo pelo qual uma dada configuração de social logra emergir pelo viés de um exercício de análise de ordem micro-seqüencial, como se verifica na investigação de estratégias interacionais de encerramento de conversas telefônicas.

Concluindo este número consagrado ao debate das práticas de linguagem apreendidas como práticas sociais, duas resenhas vêm colocar em cena dois vastos campos discursivos que funcionam como pólos de captação do interesse dos leitores: o campo do discurso científico e o do discurso literário.

Situando-se no cenário dos discursos das ciências da lingua-gem, Bruno Deusdará e Isabel Cristina Rodrigues apresentam-nos Cenas da enunciação, obra de Dominique Maingueneau recém-lançada no país, a qual reúne nove artigos do autor originalmente publicados em fontes diversas. A relevância da obra reside precisamente no fato de que nela se condensa o vasto leque conceitual que vem delineando o interesse de Maingueneau no domínio da Análise do discurso.

Com Maria Lilia Simões de Oliveira, será a vez (e a voz) do texto literário, o Dom Quixote de la Mancha, de Ferreira Gullar. Tradução e adaptação de um clássico de Cervantes, o trabalho de Gullar representa expressiva contribuição para os leitores da contemporaneidade, como bem o assinala a resenhista, por razões que se prendem ao mérito dos resultados bem-sucedidos alcançados por Gullar.

Eis, de modo sucinto, o que o leitor encontrará neste número de Matraga que tematiza a dimensão social das práticas linguageiras. Claro está que outras possibilidades de apreensão da referida dimensão teriam sido igualmente possíveis em função da natureza dos corpora trabalhados, dos quadros teórico-metodológicos de apoio, do perfil de interdisciplinaridade pretendido (que disciplinas convocar para a leitura dos textos?), etc.

Nesse sentido, a paisagem que se oferece neste número é apenas uma dentre tantas, não constituindo um projeto seu camuflar o caráter necessariamente perspectivo que define este empreendimento. Pelo contrário, queremos aqui explicitar, e com todas as letras, as opções que fizemos e que buscamos reconstituir no mosaico de trabalhos mencionados nesta Apresentação. Mosaico que se (re)desenha por trajetórias de natureza diversa: (i) pelos domínios de investigação que se privilegiam (o universo pedagógico-educacional, o mundo do trabalho na contemporaneidade, o sistema das trocas verbais cotidianas, a retomada de um episódio da história de nosso país, o território das condições sociais subjacentes ao trabalho de tradução, dentre outros); (ii) pelo gênero de discurso que serve de base às análises (os pronunciamentos oficiais, as conversas cotidianas, o cartum, as cartas de apresentação, o manual que prescreve comportamentos do trabalhador, etc.); (iii) pelos conceitos que dão sustentação às leituras realizadas (memória discursiva, capital cultural, prescrição, ethos, cenografia, contrato de comunicação, gêneros discursivos, subjetividade, interação verbal, identidade) dentre outros tantos. Vocação caleidoscópica de um campo que, mais do que permitir uma abordagem diversificada, impõe-nos a apreensão de múltiplas dimensões que dialogam incessantemente.

Décio Rocha
Maria Teresa Gonçalves Pereira